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  • Thaís Magalhães Manhães

Vários mundos dentro de Babel

Atualizado: 7 de jul. de 2023


 









Para mim, as guerras nunca irão acabar porque nós, humanos, não falamos a mesma língua.

Quando criança, fui contrariada para as aulas de catequese na Igreja dos Capuchinhos, na Tijuca, bairro no Rio de Janeiro. Apesar da insatisfação, uma história que a catequista contou me marcou: a história da Torre de Babel. Este, talvez, tenha sido um dos momentos mais catárticos da minha vida quando criança.


Com as imagens do livro, que por sinal era altamente ilustrado e colorido, recriei o cenário da cidade Babel. A minha imaginação não tinha limites. Eu imaginava homens de turbante, mulheres de hijab, camelos pelas ruas, poeira de terra batida, e tudo isso dentro de um grande mercado de alimentos.


Tudo corria bem, pessoas comprando, pessoas vendendo, crianças correndo por todos os lados. De repente, vamos a um plano curto de um comerciante a vender frutos secos para uma dessas mulheres de hijab, e, como em um piscar de olhos, ninguém mais falava a mesma língua.


O caos começou. Corta para um plano aberto do mercado visto de cima, todas as pessoas começam a não se entender mais e o som é de gritaria.


Depois de ouvir a história da Torre de Babel, e criar esse cenário, passei a chamar o mundo de Babel, e não mais de mundo. Para mim, chamar o mundo de Babel passou a fazer muito mais sentido do que chamar o mundo de mundo, afinal, ninguém se entende.


Anos se passaram desde a aula da Soninha, a professora de catequese, e uma vez em Berlim, conheci uma família árabe da qual fiquei muito próxima. Eu brasileira, eles árabes. Nós conversávamos em “inglês” pelas ruas berlinenses. Escrevo "inglês" entre aspas porque acho que falávamos tudo, menos inglês propriamente dito. Me lembro das nossas conversas com um plano de fundo específico daquele inglês atravessado entre o chiado carioquês e o árabe sírio. Tá aí a foto do Babel contemporâneo.


Entre “misunderstandings” e Google Tradutor, o nosso instinto em comunicar, tão humano, fazia a comunicação acontecer. A gente se entendia.


Eu gostava de observá-los. A expressão corporal, o olhar, o jeito que mexiam as mãos, as comidas, a forma de pensar. E me sentia observada também. Tudo era tão igual e diferente ao mesmo tempo.


Quando eles conversavam entre si, eu quase sempre ouvia Allah em alguma frase. Inshalah, Allahu Akbar, Mashallah, Bismillah… Allah, Allah, Allah… Percebi que eles comunicavam comigo em inglês, porém, pensavam em árabe, ou seja, todo o repertório cultural e estrutural do idioma árabe era substituído por palavras em inglês de forma artificial. E a mesma coisa eu. Assim, nós falávamos-nos em inglês, mas, enxergávamos o mundo com óculos diferentes: eu com as lentes "língua portuguesa", e eles através das lentes "língua árabe".


Foto: Nilceli Chernatovicz. Edição: Thaís Magalhães Manhães.

A marca do português estava sempre presente em mim. Ensinei a palavra “saudade” para eles, e como todo bom falante nativo de português expliquei de forma emocionada: “só em português existe uma palavra que significa 'i miss you'". Também eu aprendi com eles que a palavra “Salamaleico" significa “que a paz esteja sobre vós”, e me surpreendi de não ter em português uma palavra para dizer isso, afinal, no meu universo reduzido, pensava que tínhamos palavras para tudo.


Edição: Thaís Magalhães Manhães.

Tudo são palavras: parole, word, wort, palabra, mot, izwi, słowo… será que existe algum idioma que não tenha a palavra “palavra” em seu repertório?


Provavelmente, entre 6.912, deve existir algum. E se não tiver a palavra “palavra”, como eles pensam sem a palavra “palavra”? Acham eles que as palavras não são tão importantes para receber um nome? Se eu, por exemplo, não tivesse um nome, o que eu seria? Mais uma humana entre outros humanos?


Percebi que as palavras carregam consigo histórias. É como o meu sobrenome, traz com ele marcas dos que vieram antes de mim, se eu não o tivesse, não saberia de onde vim. Talvez por isso temos essa tendência nomear tudo.


Com as lentes míopes da minha língua portuguesa, fui percebendo o mundo cada vez mais embaçado. Percebi, então, que o meu mundo não era o mesmo que o deles, afinal, nomeamos as coisas que vemos, sentimos e fazemos de forma diferente. Eureka! Uma descoberta começou a tomar conta de uma das personagens da cena do mercado de alimentos: existem 6.912 mundo diferentes dentro de Babel.


Texto escrito conforme o novo acordo ortográfico.

Variedade linguística brasileira utilizada.




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